Nimbus, inconformado
Tenho sofrido incontáveis humilhações nas mãos dos meus aeromodelos. E injustos golpes
na minha autoestima quando eles caem e quebram. Tem sido assim por muitos anos, mas
magoam mais agora que sou idoso. Minha mulher, que é psi, diz que falar desses episódios é
bom, ajuda a elaborar as perdas, viver os lutos. Mas falar para quem, pergunto? Por acaso me
sento num bar com um grupo de conhecidos e digo, assim do nada, que meu avião caiu
ontem? Tá bem, meu aviãozinho, mas mesmo assim... Sobrolhos franzidos e sorrisos
condescendentes é o que vou receber, isso na melhor das hipóteses. Nenhum adulto está
preparado psicologicamente para aceitar com naturalidade que o seu interlocutor, também
adulto, é aeromodelista. Curiosidade, nenhuma, interesse, zero. Com criança é até pior,
indiferença total. É mesmo muito difícil para um aeromodelista encontrar seu público.
Se não tenho com quem falar, vou escrever. Vou escrever o que me vai na alma e assim
elaboro minha perda e vivencio meu luto. Já vou avisando que farei como alguns velhos
marinheiros que atribuem sentimentos às suas embarcações. Vou humanizar o Nimbus. Para
começar é bom que eu diga que ele tinha 46 anos quando morreu. Com quarenta anos foi
tirado da prateleira onde dormia e ganhou, como prótese nasal, um motor elétrico potente e
uma hélice. Em poucas horas viu-se transformado em um motoplanador e está aí a origem de
todos os males, penso eu. Era um cisne e talvez tenha virado um ganso.
No seu primeiro voo motorizado, galgou os céus com a majestade dos seus três metros de
envergadura, como quem reencontra o seu elemento primordial. Livre da poeira de quatro
décadas, chegou a inacreditáveis quatrocentos metros de altura e lá pairou soberano
enquanto durou a corrente térmica que surgiu apenas para recebê-lo. Mas não nos
enganemos. Estava subjugado por uma entidade que eu chamo de O Senhor das Térmicas e
que às vezes se materializa sob forma humana na pista da AMA. Não lhe cabia, como
aeronave, vontade própria. Estava à mercê do Senhor das Térmicas. Em outros voos, sob
comando de mortais, é que começou a mostrar as inconstâncias da sua nova condição.
Uma vez, caiu inopinadamente, com comandos invertidos. Reparado, fez alguns poucos voos,
sempre majestáticos, e então iniciou a série dos que invariavelmente terminavam em
sobressaltos. Chegou a queimar suas entranhas eletrônicas a baixa altura e veio cinicamente
em direção ao solo, como quem diz salve-me se for capaz. Pouco depois superaqueceu sua
bateria e repetiu a artimanha, pousando preguiçosamente a um metro do único obstáculo
existente na área de voo. Aí, no pior desses episódios, ocultou-se da minha visão e quando
reapareceu exibiu-se de dorso, lançando-se em um mergulho supersônico, com uma
coreografia horrenda de flutters e flexões que terminaram sem dano em meio ao capinzal,
meu coração aos saltos, meu amor-próprio no chão.
Morreu no sábado seguinte. Num dia radioso, flutuou em térmicas fenomenais até quase
perder-se de vista e voltou ao solo em um pouso de que só cisnes são capazes. Como disse o
Edú, foi o seu canto. Mostrou que queria ser cisne e não ganso. Então decolou pela derradeira
vez e do nada partiu-lhe uma asa, como se
fraturada pelo chumbo de um caçador desalmado.
É que não suportava o motor e a hélice.
Não tenho mais dúvidas.
Matou-se.
Carlos Americo Ferraz e Castro BRA 45